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terça-feira, 5 de junho de 2007

Guardar livros para quê?

O velho Geadas vive lá na rua desde sempre. Pelo menos, desde sempre, que eu existo. É de certeza muito mais velho que a segunda guerra mundial e, já devia esgalhar a “sua” por altura da primeira. Tem uma cara enrugada de quem tem pelo menos cem anos. Os olhos são dum tamanho descomunal. Ou pelo menos parecem, a julgar pelo que se vê através dos vidros - fundo de garrafa, que ele pendura numa velha armação. Por detrás das orelhas e à volta da cabeça vê-se uma amálgama de cordéis que sustentam em precário e desengonçado equilíbrio, os óculos, a armação, o chapéu e quiça a própria cabeça que se prende ao tronco através dum finíssimo pescoço que é esguio como um eucalipto mas rugoso como um sobreiro.
Usa um velho chapéu de feltro o tempo todo. Dele pendem os cordéis como se fossem teias de aranha e que, não raro, lhe provocam comichão. Nessa altura, irritado, tira o chapéu e coça a cabeça e as orelhas, rematando o ritual com uma cuspidela nas mãos e, com a brilhantina improvisada, alisa três ou quatro vezes a careca e algumas farripas de cabelo. Reconfortado com a improvisada penteadela, volta a equilibrar o chapéu na cabeça juntamente com os cordéis e os óculos.
Seja Inverno ou seja Verão, faça frio ou muito calor, o velho Geadas nunca tira o seu sobretudo escuro de espinha de bacalhau e que há muitos anos atrás deve ter tido uma cor bastante mais clara. Hoje, pelo menos trinta anos depois de ter sido novo, o sobretudo parece uma enorme nódoa, manchada de pequenas nódoas que tanto podem ser gordura de comida, como dos intermináveis galões escuros, das bolas de Berlim, ou dos bagaços que lhe rematam o almoço. A gola está brilhante, com a camada de sarro que tem e, das mangas, tirava-se a gordura suficiente para estrelar ovos para uma casa de família. Na lapela um emblema do Oriental, o seu clube de sempre.
Já se sabia lá na Pastelaria do bairro que o velhote não tirava o sobretudo para fazer as suas necessidades. O Joaõzito, 8 anos, filho do Sô Manel e da Dona Rosa, donos da Pastelaria “Mimosa do Oriente” tinha a mania de espreitar por baixo da porta da retrete, e relatar o que via. Essa curiosidade também já lhe valera um bom par de tabefes do Vitorino, mecânico de profissão, que não achou piada ao divertimento do miúdo e lhe espetou duas berlaitadas nas ventas, perante o olhar resignado do pai e os berros de “ainda comes mais se voltas a fazer” da mãe. Mas não era necessária essa informação do Joãozinho pois ela estava bem patente no próprio sobretudo, quer através de áreas carcomidas pelo ácido úrico, quer das suspeitas manchas acastanhadas que o sobretudo exibia.
Será que o velhote dorme com o sobretudo? Não seria admiração por aí além mas quando acossavam o velhote com a pergunta este, rezingão e chateado, respondia que só dormia com ceroulas e pijama.
Das vezes em que o Joãozito conseguia roubar, por debaixo da porta da casa de banho, a bengala do velhote, ouviam-se um churrilho de impropérios, asneiras e ameaças que muito divertiam o puto e, causavam uma forte risada entre a clientela. Não havia então, grande respeito e consideração pela idade e, tal como com muitos deficientes, eram um motivo de chacota. O Geadas, quando podia, vingava-se, desfechando uma bengalada nas costas do garoto. Numas das vezes até lhe acertou na cabeça e provocou-lhe um respeitável galo que o livrou de chatices quase seis semanas.
O velho Geadas trabalhou 50 anos como fiel de um armazém de vinhos na zona do Poço do Bispo. Dormia frequentemente no próprio armazém, e aproveitava muito do tempo de vigília para a leitura. Era um verdadeiro viciado por livros policiais não se importando de os ler repetidas vezes, citando de cor as passagens e dizeres que mais o tinham impressionado. Nos primeiros anos de reforma continuou a ler com grande regularidade e sofreguidão. Tem uma verdadeira paixão por livros e pela leitura. Mas de há uns meses para cá as coisas estão a mudar. Agora, quem olhar para o Geadas, vê que ele rasga os livros que lê.
A manhã, é dedicada à leitura do Diário de Notícias, propriedade do café. O nosso amigo, lê as gordas da política, escarafuncha ao de leve notícias de escândalos, roubos, agressões e homicídios, passa os olhos pela necrologia a ver se encontra alguma cara conhecida e sobretudo para confirmar que a dele ainda continua ausente da fatídica coluna. Faz as palavras cruzadas e um ou outro passatempo que por lá encontre e está lido o jornal. À tarde, pega num livro policial que transporta no bolso do sobretudo. Já tem umas tantas folhas rasgadas mas o velhote retoma a leitura sempre no início. Lida a folha, rasga-a e coloca-a de lado, formando uma pilha à medida que a leitura avança.
- Geadas, porque raio é que você está a rasgar os livros? pergunto-lhe.
Ele responde-me com uma lógica que não me ocorrera:
- O que é que você quer? Com as dificuldades da vista e a idade que eu já tenho, não o vou ler outra vez e, ao menos assim, sei sempre em que página vou.

1 comentário:

escória-porco disse...

Aqui está um verdadeiro ícone do panteão escória. Saudemos o velho Geadas