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quinta-feira, 23 de agosto de 2007

ANOS 70 ( I )

O nosso Professor dos “safanões dados a tempo” – já estamos, obviamente, todos de pé – iniciou a sua grande viagem, rumo às grandes pradarias celestes, fez 37 anos no dia 27 de Julho.

Nessa época eu, com os meus “quinzanitos”, já dava os primeiros passos no mundo do trabalho, mais precisamente na secção de sobrescritos da Papelaria Fernandes.

Todos conhecemos as histórias das partidas pregadas aos maçaricos, desde “ir buscar a marreta de amaciar borracha”, até “colar os rectângulozinhos nos cartões de 80 colunas, para serem reutilizados”, entre muitas outras, um pouco o equivalente à caça aos gambozinos que mimoseava os amedrontados putos na sua iniciação aos acampamentos.

Como não podia deixar de ser, também me vi envolvido numa cena dessas.

Toca a enquadrar a coisa: Os sobrescritos (basta abrir – planificar – um para perceber) têm um formato específico. São cortados por um molde de ferro, pesando cerca de 15 Kg (o cortante), através de uma máquina de pressão (o balancé). Ora esse cortante deve estar bem afiado para poder lacerar sem falhas a montanha de papel.

No meu primeiro dia de trabalho o “ti” Armando, como era conhecido, chamou-me para me dizer, com um ar muito sério, que uma das minhas funções como aprendiz era levar os cortantes a afiar “ao Beco das Olarias” e, a propósito, já ali tinha o primeiro.

Quando olhei para o monstro (era um dos modelos maiores e mais pesados) comecei a pensar que estava metido num bom sarilho. Enfim, alguém havia de me ajudar, pelo menos, a colocá-lo numa espécie de protecções de madeira que serviam para o transportar.

Nesse momento o chefe chamou-me para me mandar ir buscar qualquer coisa a outra secção e o assunto ficou em suspenso.

Quando voltei já passava do meio-dia e tanto o “ti” Armando como os outros já tinham ido almoçar. Que fazer? Bom, eu não era nenhum mariquinhas e, além disso – atenção - já tinha o quinto ano o que era, no conjunto daquela tropa, chefes e sub-chefes incluídos, o maior nível de habilitações da oficina. Lá arranjei uns apoios, umas cordas, umas capas de papel kraft impermeável para ser mais grosso e, ao fim de algum tempo, lá tinha o cortante devidamente protegido e embalado.

A odisseia seguinte foi conseguir rolá-lo (um cortante tinha, mais ou menos, o formato de um quadrado) durante a centena de metros que separava o pátio das oficinas da paragem do 25, em pleno Largo do Rato. O próprio porteiro, meio aparvalhado, apenas sorriu quando lhe disse que cumpria ordens do “ti” Armando.

Felizmente um grupo de guarda-freios, que estava à sombra das frondosas árvores que ornamentavam o Rato nessa época, ajudou-me a elevar a bisarma até à plataforma da frente do eléctrico. A suar que nem uma besta lá segui até ao Martim Moniz a troco do bilhetinho azul de quinze tostões, bem guardadinho no bolso para mais tarde prestar contas.

Uma vez no Martim Moniz lá foi o resto do “calvário”: Rodar o trambolho Calçada dos Cavaleiros acima, virar à esquerda, ultrapassar umas escadinhas de que a zona é fértil e descobrir, num canto a Serralharia Mecânica das Olarias.

Ainda meio curvado e completamente encharcado de suor ouvi o dono da oficina proclamar um rotundo “Eh cumcaralho estás fodido, que os gajos andam todos à tua procura, já ligaram para cá e tudo. Isso era uma partida para tu te borrares todo e começares a suplicar, com a malta toda a rir. Essas merdas vêm numa carrinha, juntamente com as lâminas de guilhotina”.

Que se foda, pensei, cumpri as ordens que me deram e o resto é conversa.

Pelo sim pelo não, na expectativa de não me pagarem o bilhete, regressei a penates. Preferi passar pela Barros Queirós e, para retemperar forças, emborcar um peppermint fresquinho na Ginginha Rubi.

Quando cheguei o ambiente, apesar do meu receio, era de admiração e de festa. Quem tinha “levado na carola” do chefe, para não ser esperto, era o “ti” Armando. No final, na minha faceta de mini-intelectual em formação e para a glória ser completa, ainda os brindei com a treta de ter sido aquela merda da história da “carta a Garcia” a mentora da minha façanha.



Uma das coisas que me maravilhava nessa oficina era, como não podia deixar de ser, a cagadeira.

Uma coisa como deve ser, quadrada, rentinha ao chão e com uns pequenos ressaltos laterais que permitiam uma perfeita aderência, quer das botas, no Inverno, quer de umas sapatilhas de lona, que mais tarde se vieram a chamar ténis, no tempo quente.

Um gajo cagava acocorado, posição ideal para que a defecação saísse na totalidade. A merda fazia dois sons distintos – lembro-me como se fosse hoje – “paff”, quando batia no ligeiro plano inclinado de louça ou “ploc” quando acertava no buraco perfeitamente centrado dessa peça maravilhosamente fabricada na “Sacavém” – não havia essas paneleirices da “roca” ou do “mantovani” – palavra mágica que aparecia, a azul (uma diagonal perfeita), num dos rebordos que, há muitos anos, já tinham sido brancos.

Uma e outra situação tinham as suas “nuances” escatolófilas: No primeiro caso soltavam-se uns ligeiros vapores perfumados, mais perceptíveis no frio do Inverno. No segundo eram as gotas de água (só água?) que, ao ressaltarem sob o impacto do cagalhão, vinham refrescar o cú assado pelos calores do Estio.


Fica a solene homenagem Escória a essa grande fábrica, infelizmente já substituída por um condomínio fechado (As voltas que o Maior Português de Sempre deve dar na campa rasa de Santa Comba), que parece – dizem, que eu não sei nada dessas coisas – serve de poiso a uma data de directores de finanças da zona (porque será?) e que proporcionou, durante anos e anos, a milhões de compatriotas, cagadeiras para aliviar a tripa, mijadeiras para mudar a água às azeitonas e bidés para lavar as partes.